segunda-feira, novembro 20

Crónica Marciana
ou
A Explicação da Guerra
por
João Ventura

Quando Marte entrou nessa manhã no Olimpo, de cenho carregado, os deuses viram imediatamente que ele não estava satisfeito. Ao longe ainda podiam ouvir-se os ecos da trovoada que vinha na sua esteira. Pousou no chão a lança e o escudo e, tirando o capacete, colocou-o ao lado das armas.
Júpiter, reclinado no trono, bocejava; tinha andado na farra até altas horas e depenicava bagos de uva de uma bandeja ao alcance da mão esquerda, enquanto com a mão direita levava à boca, de quando em quando, uma taça de hidromel.
O grande salão tinha o aspecto habitual, enfeitado com grinaldas de rosas; ouvia-se o canto de aves de plumagem colorida; alguns deuses menores tocavam e dançavam, outros chapinhavam alegremente na piscina de água tépida e perfumada.
Indiferente ao ambiente, Marte avançou direito ao trono, as sandálias marcando um som cadenciado no chão de mármore branco, e à sua passagem as conversas iam morrendo, enquanto os deuses observavam o seu trajecto através do enorme salão.
Na presença de Júpiter, Marte disse:
- Preciso falar contigo, Pai dos Deuses! Em privado...
A vénia ritual foi quase imperceptível, mas Júpiter fingiu não reparar.
- Vamos ali para o escritório, disse Júpiter e, levantando-se do trono, dirigiu-se seguido por Marte para uma porta sobre a qual se lia "Conselho de Administração do Olimpo - Presidente".
O ruído das conversas no grande salão voltou lentamente ao normal. Apenas Juno se foi deslocando lenta e disfarçadamente em direcção à porta, para tentar ouvir alguma coisa do que se passava do outro lado. Afinal, as mães preocupam-se sempre com os filhos...
- De que se trata então? perguntou Júpiter, sentando-se numa poltrona e indicando outra a Marte.
Este manteve-se de pé, mas a sua postura era mais de desafio do que de respeito.
- Queria falar-te sobre a distribuição dos planetas que fizeste.
O rosto de Júpiter ficou mais sombrio e apenas disse:
- Fala!
- Aceito perfeitamente que tenhas ficado com o maior deles todos, com 16 luas e uma mancha vermelha, linda! Que a Saturno, teu pai, tenhas dado o segundo maior, cheio de anéis, com 18 luas. Embora ele tivesse a mania de comer os filhos e tu tivesses escapado por pouco, mas pronto, sabes que eu sempre fui muito respeitador da família. Que a teu avô Urano tenhas dado o terceiro em tamanho. Concordo que tenhas oferecido a Vénus o mais brilhante, com as nuvens a reflectir o Sol, uma verdadeira jóia, fazendo jus à sua beleza. Plutão levou o mais pequeno, mas também, sempre debaixo do chão a tratar dos mortos, para que quer ele um planeta?
Júpiter mexeu-se impaciente na poltrona, sem perceber onde levava o discurso de Marte.
- Agora que teu irmão Neptuno, esse velho gágá, sempre a tropeçar no tridente, enrolado com ninfas e sereias, as barbas cheias de limos, fique com o quarto em tamanho, rodeado de 8 luas, já me custa a engolir! Que Mercúrio, esse teu moço de recados, esse coscuvilheiro, esse fala-barato, apanhe o mais próximo do Sol, ainda por cima com uma órbita com precessão, passa das marcas! E a mim, dás-me um planeta sem água, uma atmosfera de dióxido de carbono, tempestades de areia que duram meses, praticamente sem campo magnético e com duas luas ridículas, a maior das quais tem 16 km de diâmetro. Duas pedras grandes!
Júpiter suspirou, enfadado. Já não podia com Marte, sempre a levantar problemas. Mas, com a intenção de preservar a paz no Olimpo, pôs a sua máscara de Pai dos Deuses generoso e perguntou:
- E o que querias tu?
Pareceu a Marte que ainda havia espaço de negociação e avançou:
- Dá-me o terceiro a contar do Sol. Só tem uma lua, é certo, mas tem terra e água, verde e amarelo, nuvens que baste...
Júpiter interrompeu-o.
- Nem pensar! Aí nesse planeta vou colocar uns novos entes: os Homens. Pretendo acompanhar pessoalmente a sua evolução. Vai ser o meu projecto mais importante! Quero fazer desse planeta um Olimpo terrestre!
Marte sentiu que tinha perdido. Quando falou, sentia-se a raiva contida:
- Muito bem! Mas já que falaste de projectos vou-te contar sobre um novo projecto que eu ando a desenvolver. Chama-se guerra psicológica.
O rosto de Júpiter exibiu sinais de surpresa e Marte, saboreando o facto de ter apanhado o Pai dos Deuses desprevenido, prosseguiu:
- Quando puseres os tais... Homens?... na Terra, eu vou-lhes meter no inconsciente (é uma coisa que eles vão ter dentro da cabeça sem saber que têm e com a qual vão pensar sem saber que pensam) um medo, um terror, uma suspeita de que em Marte vivem outros seres, assustadores, alienígenos, verdes, uns... aaa... marcianos, o nome até é bonito, marcianos, que estão a preparar uma invasão da Terra, para os escravizar, decapitar, empalar, eu sei lá... E eles hão-de viver sempre com esse medo dentro das cabeças, e quando olharem para cima será sempre com receio do ataque que poderá estar iminente. Adeus, oh Pai dos Deuses!
Juno mal teve tempo de se desviar da porta quando esta se abriu de rompante. Marte passou por ela sem a ver, caminhou rapidamente até à grande entrada do salão, pegou nas armas e saiu do Olimpo. Juno entrou no escritório:
- Então, Júpiter, que queria ele?
- Sempre te disse que isto de parires um filho sem a minha ajuda dava mau resultado. Este Marte não tem arranjo! Questionar a distribuição dos planetas feita por MIM!
E, com ar indignado, Júpiter voltou à sala do trono; a música ambiente acalmou-o, esqueceu a conversa com Marte e começou a dedicar o seu intelecto divino à magna tarefa de decidir o que iria fazer nessa noite (depois de Juno ter adormecido...)
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Como poderia Orson Welles saber, milénios mais tarde, que todo o pânico causado por um célebre programa de rádio era afinal a consequência longínqua de uma birra do Deus da Guerra?

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